Alan Villela Barroso*
Durante a expansão marítima, ocorrida no século XVI, impulsionada pelos portugueses e europeus, visando a conquista de novos impérios, tesouros e riquezas, o Brasil foi, de repente, “descoberto”. Quando as capitanias portuguesas de Pedro Álvares Cabral desembarcaram em terras brasileiras, diferentemente do que esperavam, não acharam o ouro e os minerais preciosos que buscavam encontrar. Mas, diante do clima tropical, da natureza vasta, selvagem e abundante, com tanta variedade de fauna e flora, somada à existência dos povos indígenas, aos olhos dos portugueses, “selvagens”, “obscenos” e, sobretudo, “mão de obra”, o Brasil tornou-se um ambiente favorável para o enriquecimento, através do desenvolvimento de uma economia própria às suas condições climáticas, neste caso, o cultivo da cana de açúcar e sua exportação para a Europa, onde o produto – especiaria -, era vastamente consumido, considerado como o verdadeiro “ouro branco”, tamanho seu valor e apreciação.
Com a ocupação das terras, os povos indígenas, nativos brasileiros, sofreram um processo de ruptura com suas próprias culturas e identidades, substituídas pelos costumes, a língua e o pensamento europeu. Com um plano estratégico, idealizado pela Igreja e pelos colonizadores em extinguir totalmente a cultura indígena, o Tupi, a língua dos nativos, foi substituída pelo português (ou castelhano), ao mesmo compasso em que as roupas e o “pecado”, cobriam a liberdade de seus corpos, rituais e pensamentos, até aquele momento, livres de preconceitos ou pudores.
A partir do cruzamento dessas culturas – a do europeu e a do indígena brasileiro – germinou uma espécie de brasilidade portuguesa, uma miscigenação de culturas e raças, que transformou-se na cara e na colônia do Brasil. Historicamente, nossa brasilidade advém, portanto, da mistura de três raças distintas: a do índio (o nativo que se tornou cativo), do branco (o europeu colonizador) e, ainda, o negro, surgindo em nossa história de maneira arbitrária, sob a condição de escravo, retirado à força pelos colonizadores do berço de sua mãe, África. Assim, inicia-se a história do teatro no Brasil, com a colonização portuguesa, somada aos interesses da Igreja Católica. Curiosamente, esta também é a história de como o pecado chegou por aqui, vindo da Europa de barco, com a Companhia de Jesus e os Jesuítas.
Assim, compreende-se que o processo de colonização ia muito além de questões territoriais, sendo urgente estabelecer, também, um processo de “colonização dos costumes”, excluindo e ignorando qualquer manifestação cultural indígena, ao contrário, espalhando e impondo os conceitos de moral e costumes portugueses, fundamentados no pensamento e na fé cristã da Europa do século XVI.
A ideia de pecado, desconhecida entre os índios, exercia um papel específico em amedrontar o pensamento, eliminando os costumes e convertendo aqueles considerados “pecadores”, ou seja, quem não enquadrava-se à moral cristã. Neste caso, pecadores seriam todos os índios nativos, existentes em terras brasileiras que, conhecendo e praticando sua própria cultura, tornaram-se uma mazela social aos interesses da Igreja e dos portugueses, uma situação que deveria ser rapidamente convertida, para que se alcançasse a “salvação”, somente pela expurgação dos pecados e conversão ao cristianismo, garantindo o progresso da colônia portuguesa em terras brasileiras.
Neste sentido, a Igreja desempenhou um papel específico durante a colonização do Brasil: a doutrinação e a catequização dos índios, na imposição de uma nova forma de pensar e se comportar, dentro dos parâmetros e pretensões de uma sociedade que buscava-se formar, e foi através do teatro que a Igreja encontrou os moldes necessários para se aproximar e se comunicar com os índios. O teatro que emerge neste momento, possui um caráter estritamente religioso, voltado para o ensinamento da fé cristã e a conversão doutrinária. Por essas características, os “Autos” são consideradas as peças teatrais oriundas deste período. De acordo com o Dicionário do Teatro Brasileiro:
[…] No Brasil, há notícias de representações de autos profanos em um período anterior a 1561, data em que Manuel de Nóbrega, provincial da Companhia de Jesus, encomendou ao noviço José de Anchieta a composição de um auto comemorativo adequado aos propósitos de conversão religiosa dos missionários jesuítas. A primeira dessas peças de instrução e devoção, da qual restam somente fragmentos sem título, recebeu, para fins editoriais, a denominação de Auto da Pregação Universal. Foi encenada na aldeia de Piratininga, entre 1561 e 1562, e adaptada para festividades cívicas e religiosas em outros aldeamentos (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2009, p. 48).
É na figura do Padre José de Anchieta (1534-1597), espanhol missionário da Companhia de Jesus, o principal responsável em catequizar os pensamentos europeus entre os povos indígenas, baseados na doutrina cristã, disseminando as ideias de pecado, pecador e, consequentemente, do castigo divino. De acordo com Décio de Almeida Prado, em seus Autos:
Anchieta […] apresenta-se impregnado pela vertente pessimista do cristianismo – a do pecado original, do homem enquanto lodo – , embora sem omitir, nem poderia fazê-lo, a redenção tornada possível pelo sacrifício de Jesus (PRADO, 2012, p. 25).
Partindo da compreensão de existência da pecaminosidade humana, o pecado foi um artifício psicológico utilizado pela Igreja entre os índios, para causar-lhes medo do inevitável castigo divino, sempre à espreita. Pretendia-se que o receio da consequente punição desempenhasse mudanças em suas condutas e costumes, considerados anti cristãos e imorais, portanto, impróprios para o progresso da civilização. Assim, a escravidão indígena, em épocas de colonização brasileira, justifica-se, pela Igreja cristã, como a forma mais adequada de livramento dos pecados, através do sofrimento, da redenção e pelo empenhado trabalho de servidão à Deus.
Assim, surgem os primeiros registros do teatro no Brasil, denominado “Teatro Jesuítico”, liderado por José de Anchieta. Em seus Autos ou Sermões Dramáticos, observa-se a existência de uma estrutura narrativa clara, cujos objetivos remontam os Autos desenvolvidos desde o século XIII na Península Ibérica: condenar os pecados e castigar os infiéis. Ainda de acordo com Décio de Almeida Prado, “a condenação impiedosa do pecador, a presença do castigo eterno pairando sobre a cabeça de todos, e não apenas dos infiéis, talvez fosse uma das regras do gênero, se não a sua regra básica” (PRADO, 2012, p. 25).
O caráter religioso, de cunho moral e com a presença constante do sagrado e do profano, do divino e demoníaco, alinhando as ideias de medo, pecado, castigo, conversão e salvação, são as características principais do Teatro Jesuítico, sendo:
Concebido como parte de uma festa maior, que nem por ser religiosa deixa de ter lados francamente profanos e divertidos; o constante deslocamento no espaço (observável também nas festividades indígenas), […] as figuras simbólicas, quando não sacras (a Sé, a Cidade, o Anjo); o cenário quase sempre natural; os papéis interpretados por alunos de vários níveis, sem exclusão dos indígenas; o diabo visto como fonte de comicidade, à maneira indígena […]; a comunicação de natureza sensorial, proporcionada pela música e pela dança, com os instrumentos indígenas de sopro e percussão sendo equiparados aos correspondentes europeus (frauta, tambor) (PRADO, 2012, p. 24).
A colonização do Brasil foi um verdadeiro processo de negação e desfiguração de uma cultura advinda das raízes brasileiras, ao transformar o índio nativo em sujeito cativo, escravo de sua própria riqueza. Assim, a catequização cristã utilizava-se do teatro como ferramenta de aproximação, comunicação e ação sobre o índio que, conforme aponta Décio, partia de dois princípios básicos: “substituir uma religião (ou mitologia) por outra e um código moral por outro.” (PRADO, 2012, p. 28). Sob esta ótica, eram negadas, excluídas e deturpadas as tradições e culturas indígenas, substituídas pelos costumes europeus, respeitando os fundamentos da moral cristã.
Neste cenário, observa-se nos Autos atribuídos ao padre José de Anchieta a existência de algumas distinções em relação aos Autos Ibéricos, por exemplo, a adoção do Tupi, língua nativa dos índios. De acordo com o Dicionário do Teatro Brasileiro, o primeiro Auto a ser concebido foi escrito “em três línguas (tupi, português e espanhol), e incorporando a estrutura da narrativa os cerimoniais indígenas (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2009, p. 48).
Estas primeiras encenações teatrais no Brasil surgiram sem muitas preocupações estéticas ou artísticas, com o objetivo principal em catequizar e converter o índio pois, para os jesuítas, “importava o “recado” […] religioso, não a estruturação e o acabamento artístico” (PRADO, 2012, p.28), no intuito de comunicar a mensagem, que era sempre a mesma: “não sejam índios, sejam europeus – pregava a Igreja. E acrescentava: se com isso perderem o reino da terra – da sua terra – , ganharão o reino do Céu”. (Ibid.).
Após o falecimento de Anchieta e ao longo dos séculos XVII e XVIII, a Companhia de Jesus deixou de existir, assim como o próprio Teatro Jesuítico no Brasil como apontado por João Roberto Faria: “não tendo havido outro santo, outro candidato à beatificação, desapareceram com o tempo os textos dramáticos porventura escritos por membros da Companhia, antes e depois da morte de Anchieta” (FARIA, 2012, p. 37).
Mesmo extinguido, o Teatro Jesuíta no Brasil deixou suas contribuições para a concepção de estruturas de encenações e narrativas cênicas que reverberaram nos séculos subsequentes, sendo facilmente identificados alguns de seus elementos em festejos e rituais religiosos da Igreja Cristã, desempenhados nos pequenos arraiais e cidades do interior de Minas Gerais. Como observado por Affonso Ávila: “toda festa mineira da época é sempre um espetáculo total e o teatro tem aí um papel de destaque, com ele se encerrando habitualmente as programações iniciadas com as missas solenes, os Te-Deums” (ÁVILA, 1978, p. 2). Um exemplo claro foi o Festival à Santa Cecília, uma festa religiosa tradicional, comemorada em Leopoldina, em 23 de novembro de 1888, segundo observado no jornal Irradiação, circulado em 14 de novembro de 1888 no município:
Terá o festival uma parte religioza e outra profana; aquela, compor-se-ha de missa cantada pela manhã e procissão a tarde; a noite, no Theatro Alencar, realizar-se-ha a parte profana com um grande concerto, funccionando todos os artistas e amadores, que tomam parte na festa religioza (IRRADIAÇÂO, a. I, n. 39, 1888, p.2).
Percebe-se na transcrição acima alguns elementos semelhantes ao do Teatro Jesuítico, desenvolvido por Anchieta no século XVI, como a divisão dos Autos entre a parte sagrada e a profana, a influência da música e dos instrumentos musicais, a participação de atores e de amadores nas atuações das personagens, o deslocamento do público pelos espaços da cidade – a Igreja, a rua e o teatro -, evidenciando a passagem do tempo na encenação teatral, pela transição natural do dia e da noite. Logo, “teatro e religião, unidos como no já remoto elo dos primórdios da colonização do país, confundem-se portanto no amanhecer cultural das Minas, a partir de então, atuando, cada qual a seu modo, no desenvolvimento espiritual do homem montanhês” (ÁVILA, 1978, p. 2).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Affonso. O Teatro em Minas Gerais: Séculos XVIII e XIX. Prefeitura Municipal de Ouro Preto. Ouro Preto, MG – 1978.
FARIA, João Roberto (Org.) História do Teatro Brasileiro – Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2012.
GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariangela Alves de. Dicionário do Teatro Brasileiro – Temas, Formas e Conceitos. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2009.
IRRADIAÇÃO, Orgão Republicano, 1888, a. i, n. 39, p. 2. Leopoldina – MG, 1888.
PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Jesuítico, p. 21-38. Capítulo em FARIA, João Roberto (Org.) História do Teatro Brasileiro – Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2012.
*Sobre o autor: Alan V. Barroso é professor na Secretaria de Educação de Minas Gerais, em Leopoldina. Discente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC, da Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP. Licenciado em Artes Cênicas (UFOP) e especializado em Cultura em Literatura (FESL).